terça-feira, 1 de abril de 2014

O dia em que eu morri

O texto abaixo foi escrito poucos dias depois que perdi a cadelinha que nos deu a honra de sua companhia por quase 11 anos. Não importando se é humano, cachorro, planta ou mineral, cada "ser" oferece e compartilha um tipo diferente de interação, carinho e amor, e nenhum deles substitui o outro. Isto mostra que nada ou ninguém é melhor que o outro, ao contrário do que a maioria das religiões prega. Afinal, somos todos gotas integradas em um oceano de gotas iguais. 

Hoje acordei com uma sensação estranha, diferente. Há alguns dias, meu abrir de olhos era sucedido por duas sensações nada agradáveis: surpresa e dor. Surpresa por eu perceber que eu estava hospitalizada (e não na minha cama e meu lar), e dor por eu estar com algum tipo de doença. 

Sempre acordei muito cedo, na minha aconchegante cama, e passava meus dias junto à minha família. Todo dia, acordava com o som do despertador de meu pai e o acompanhava até que ele fosse trabalhar, passando então a acompanhar minha mãe, que ainda dormia. Enquanto meu irmão morou conosco, pelo fato dele trabalhar em seu escritório em casa, fazia questão de o acompanhar quando dava suas aulas ou criava seus trabalhos, e minha vida era mais ou menos isso: brincava com quem estivesse disposto a brincar, comia, dormia e acompanhava o ritmo da casa. Pelos amigos que fiz na vida, arrisco a dizer que não havia vida melhor do que a minha. E até por isso, me sentia muito estranha ao acordar em um leito de hospital e sentindo dores. Sempre fui saudável, fiz exercícios e me alimentei bem. Então por que eu estaria ali? Por que meus pais não vinham me buscar? Nestes últimos dias, não conseguia entender o que estava acontecendo.

Pois bem... Naquele dia, acordei com uma sensação diferente. A ansiedade e vontade de sair daquele hospital estavam menores que nos dias anteriores, minhas dores me incomodavam menos do que nos dias anteriores e eu gozava de uma estranha calma. No meu corpo, sondas, agulhas e outros adereços que mostravam que ele não funcionava mais como antes. Me sentia mais cansada, desanimada e ao mesmo tempo, resignada com isso. Em pouco tempo, vieram os mesmos médicos que me assistiam nos dias anteriores, e por mais que eles se mantivessem me tratando bem, com muito carinho e as brincadeiras de sempre, pude perceber um certo pessimismo no semblante deles. Aquele sem dúvida era um dia diferente.

Pelo excesso de remédios que eu tomava, passei o dia meio que dormindo e acordando. Com as dores cada vez menores, uma leveza me preenchia cada vez mais. Meu leito tinha luz o tempo inteiro, por isso não sabia quando era dia e quando era noite. Lá pelas tantas, finalmente minha família veio me visitar. Meu pai, minha mãe e meu irmão. Fiquei muito feliz ao vê-los, mas já não nutria a mesma vontade de implorar para que eles me tirassem dali. Os três me deram muito carinho (como sempre), me beijaram, disseram palavras de apoio e convicção na minha recuperação... Mas pela forma como choravam, matei a charada: eu não sobreviveria à cirurgia que faria em poucos minutos.

Procurei aproveitar cada minuto ao lado deles, com muita paz e tranquilidade. Não havia mais o que ser feito por mim ou por eles, e, como já disse anteriormente, não houve vida melhor que a minha. Não havia motivos para eu praguejar ou ficar triste. Ainda mais tendo ali minha família completa ao meu lado.

Na medida em que os medicamentos pré-operatórios faziam efeito, eu sentia meus olhos mais pesados, e uma incontrolável vontade de dormir. Procurei dar e receber o máximo de contato "humano", pois sabia que em breve não mais o teria. E como sempre soube me comunicar com minha família, mesmo sendo eles humanos e eu, uma cocker spañiel de quase 11 anos de idade, fitei longamente cada um deles agradecendo por tudo que vivemos juntos. Acho que consegui passar a mensagem que eu queria: "realmente não houve vida melhor que a minha. Obrigada por tudo. Amo vocês". Depois disso, não me lembro mais de nada. Anestesia, cirurgia... Nada. Apenas dormi.

Acordei em outro hospital, ainda me sentindo dopada, mas estranhamente leve e sem dores. Estranhei o fato de estar em outro local e com médicos diferentes. Como sempre fiz com humanos (principalmente através de olhares e linguagem corporal), me comuniquei intuitivamente:

- Aonde eu estou? Quem são vocês? Cadê minha família?
Um deles me olhou serenamente e respondeu:
- O hospital que você estava era para doenças mais graves, e este é um centro de recuperação. Em breve, você irá para seu novo lar.
- Novo lar? Mas eu não quero um novo lar, quero voltar para minha casa e minha família!
- Apenas descanse, em breve te explicamos tudo.
Mas não foi preciso explicar. Vocês, humanos, adoram se gabar por às vezes terem um sexto sentido ligado a uma suposta hiper sensibilidade, mas nós, cães, temos os seus cinco sentidos mais três que vocês só usam em condições extraordinárias, que são o instinto, o amor puro e a fidelidade plena. E talvez por estar com meu instinto altamente apurado, eu entendi o que houve: eu tinha morrido, e estava me recuperando para ir pra algum daqueles locais que vocês, humanos, chamavam ora de céu, ora de plano superior.

Apesar de me sentir ótima naquele local, eu ainda preferia voltar para a casa de minha família. Sempre escutei as pessoas dizendo que tinha puxado de meu pai essa aversão a grandes mudanças na vida, e acho que aquilo ficava evidente naquele momento. Gostava da rotina que tínhamos, sempre fui metódica e as coisas sempre funcionaram assim. Mas a vida segue (com ou sem vida), e não havia mais nada o que ser feito. Me mantive calma e me concentrei apenas na minha plena recuperação.

Poucos dias depois, acordei muito melhor, e fui encaminhada para minha nova casa. Na porta dela, apareceu uma pessoa muito familiar. Parecia ser meu pai. Corri na direção dele, mas ele demonstrou um certo receio em me carregar no colo (como meu pai sempre fez).
- Calma lá, menina, nós vamos cuidar de você com muito carinho, mas aqui você não dormirá na nossa cama. Olhe ao seu redor, tem muitos amigos que farão companhia para você, há brinquedos, comida e muito espaço para você brincar por aqui.

Olhei ao meu redor e vi uma espécie de jardim muito grande, florido e bonito. Dava para correr à vontade, não havia riscos de atropelamentos (pois não havia ruas ou carros nos moldes que via em meus passeios diários) e o clima era extremamente agradável. Para completar o quadro, em nosso amplo quintal (que mais parecia uma praça pública), havia diversos cães, gatos e passarinhos. Reconheci ali meus primos cachorros, meus irmãos canários e vários cachorrinhos que conheci ao longo da vida. O olhar deles era uma mistura de "seja bem-vinda" e "vamos brincar". Me senti muito bem, mas ainda estranhava a grande familiaridade daquele homem que se parecia muito com meu pai. Olhei profundamente para ele (que estava com sua esposa na porta daquela aconchegante casa) e perguntei intuitivamente quem eles eram.
- Sou o pai de seu pai, e esta é a mãe de seu pai. O pai de sua mãe morava aqui perto e sempre nos visitava, mas há pouco tempo voltou para a Terra. Você terá que aguardar um bocado para voltar a ver sua família. No entanto, não se preocupe. Você continuará se divertindo, correndo, comendo... E tendo todo amor que você merece.
- E minha família, eu não posso visitá-los?
- Você receberá muitas notícias deles e eles de você. De vez em quando, você poderá se encontrar com eles, mas tenha calma, neste momento é importante que ambos entendam que estão em locais diferentes.
- Me encontrar com eles? Aqui ou na minha casa?
- Calma, menina... você vai ter tempo suficiente para entender tudo.
- Mas... Vai demorar muito para eu poder vê-los? Sabe como é... Se eu puxei a coisa de ser metódica do meu pai, puxei também a ansiedade da minha mãe. Além disso, desde que eu entrei na minha casa, não fiquei um dia sequer sem pelo menos meu pai, minha mãe ou meu irmão... Nem imagino como é a vida sem eles.
- É aí que está... A sua vida como ela era não existe mais. Não se preocupe, vocês não poderão ser separados. Lembra quando eles saíam e te deixavam sozinha em casa?
- Lembro. Aquilo me entristecia muito.
- Pois é... Mas eles sempre voltavam, não é? Será o mesmo agora. Considere que desta vez, foi você que saiu.
- Mas eu preferia voltar...
- Não se aborreça, menina. Vocês terão alguns encontros casuais e você poderá visitar sua ex-casa de vez em quando. Basta que haja uma sintonia saudável entre vocês. Se a sintonia for ligada à tristeza e saudade física, isto só fará mal a vocês. Entenda uma coisa: existe um tempo certo para tudo, e não podemos mudar este tempo. Porém, há um elo muito forte entre vocês, e isto resistirá ao tempo. Nada poderá separar vocês. Nada.

Fiquei um pouco pensativa, mas tudo estava claro. Certas coisas, a gente pode até não gostar, mas não tem o direito de questionar. Aliás, eu não tinha o direito de reclamar de nada. Não houve vida melhor que a minha. Até minha morte foi rápida e indolor. E eu sabia que muitos dos meus amigos tiveram um fim de vida muito mais demorado e doloroso que eu meu. Eu fora, mais uma vez, extremamente abençoada!
- Bom... - continuei - Então quer dizer que uma hora eles virão até mim?
- Ou você irá ao encontro deles.
- No caso deles virem para cá, mesmo que eles demorem, eu posso esperar na porta, com um desses brinquedinhos na boca? Sabe como é, eu sou muito metódica, e sempre fiz isso na vida...
- Poder, pode. - disse meu avô, soltando uma risada contida - Mas... Adiantaria alguma coisa se eu dissesse que é melhor você tentar seguir sua nova vida aqui, sem se ater aos seus velhos hábitos terrenos?
- Pra ser sincera, prefiro esperar na porta com o brinquedinho na boca...
- Você é quem sabe...

Desta forma, meu avô, que muito se parecia fisicamente com meu pai, entrou na casa ao lado de minha avô. Alguns gatos foram atrás dela, e mesmo vendo alguns cachorros me chamando para brincar, fiquei alguns minutos ali com um brinquedinho na boca. Sabia que meus pais e meu irmão demorariam, mas valia a espera. Eles tirariam o brinquedo da minha boca, eu resistiria por alguns segundos, puxando o brinquedinho... Aí eles o jogariam longe, eu correria para pegá-lo e pularia no colo deles. Nunca me cansei desta brincadeira. E caso eles demorassem muito, ainda assim, eu esperaria. Afinal, sempre fiz tudo por eles e eles por mim. Além do mais, quando cada um deles aparecer neste jardim, quero agradecer por tudo e dizer que valeu cada segundo de nossa convivência. Assim, eu não sairia daquele jardim por nada.

- Mel, acaba de sair do forno um pão quentinho. Tá com fome? - disse meu avô.
Bom... Por um pão fresquinho, a gente até abre uma exceção, né? Larguei o brinquedinho e entrei correndo.





(dedicado à Mel Louise Paione, uma linda cocker spañiel que

nasceu em 14/06/2003 e fez parte de nossas vidas até

21/03/2014 - escrito por Daniel Paione de 24 para 25/03/2014).



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